Gosto paraplégico da angústia
Que de épocas contempla aos cândidos
Com um belo câncer no miocárdio.
L. Valdez
Nada mais familiar aos brasileiros do que as esquinas cheias de gente pedindo esmola. Entre os pedintes há os que se apresentam em cadeiras de rodas ou muletas. Há os velhos, os barbudos, os bêbados e as mulheres com bebês no colo. Há as crianças, sobretudo, muitas crianças. De uns tempos para cá elas se especializaram em fazer malabarismo na frente dos carros. Algumas são realmente competentes na arte de manter no ar três, quatro ou cinco bolinhas. Demonstram que tiveram sagacidade e persistência para aprender, o que pode ser sinal de talento também para outras coisas na vida. Outras vão mal, constrangedoramente mal. Fazem papel de pequenos palhaços involuntários no show das esquinas. Todos têm em comum os andrajos com que se vestem e a fuligem da pobreza que lhes cola à pele, sinais do desvio social em que estão metidos.
Todos? Não. Há uma exceção: uma tribo de mendigos chiques que sazonalmente invade as ruas. Vestem roupa de butique. Não raro, terminado o expediente nas esquinas, dirigem-se ao carro que estacionaram nos arredores – carro bom, de modelo recente. O compromisso seguinte será uma compra no shopping center ou, se estiver na época, uma sessão da Fashion Week. A noite terá o restaurante da moda e a balada. São os novos alunos das faculdades. Nesta época, de divulgação dos resultados dos vestibulares, eles se postam nos cruzamentos, monitorados pelos "veteranos", para pedir dinheiro. Não dizem que estão pedindo esmolas. Dizem que é para arrecadar fundos para a festa dos calouros, para a cervejada, algo nessa linha. O.k., assim é mais elegante para com a clientela, ainda que cruelmente deselegante com quem pede para comer mesmo.
Tanto melhor, dirão alguns, que o trote dos calouros se limite a pedir dinheiro. Há versões piores, que vão da violência física a situações de humilhação moral muito mais perversas do que esmolar. Quatro anos atrás, em São Paulo, um calouro de medicina morreu na piscina onde, sem saber nadar, fora forçado a mergulhar. Há algo de deprimente, no entanto, nessa gente bem-posta, bem-vestida e, em regra, claro, branca – a cor de pele da esmagadora maioria dos que entram nas faculdades – reunida nas esquinas para mendigar. Para começar, os calouros pecam contra os princípios da sadia concorrência. Drenam os trocados que, de outra forma, poderiam destinar-se ao andrajoso de pele escura da esquina seguinte. Mas esse é um aspecto secundário da questão. Importante é o significado que o exercício da mendicância chique assume no plano mais simbólico.
Outrora, uma das cenas favoritas, nos desenhos ou nas gravuras que exploravam a estética do grotesco, era o festim dos mendigos. Em torno de uma mesa farta, reuniam-se os maltrapilhos, os sujos, os desdentados. Considerava-se muito divertida a inversão dos papéis. Na mesa dos ricos, por vezes até provida de finas toalhas e cristais, os pobres se esbaldavam. No caso da mendicância dos calouros, observa-se a mesma inversão de papéis, mas em sentido contrário: são os ricos que imitam os pobres. É a velha história do príncipe e do mendigo, na faceta não do mendigo reinando no palácio, mas do príncipe esmolando pela rua.
Quando o pobre imita o rico, o resultado pode ser cômico ou trágico, dependendo do talento de quem imita e do espírito de quem observa. Quando o rico imita o pobre, o resultado é humor negro, o mais puro e desabrido humor negro, ainda mais no Brasil. A caricata versão do mendigo de camiseta de grife é o Brasil achincalhando a si mesmo. É a encenação, na avenida, para usar da linguagem carnavalesca, do enredo da imitação da miséria, campeão indiscutível, num país já suficientemente aquinhoado de miséria, no quesito escárnio. A figura do pedinte que acaba de ingressar no círculo do privilégio que é a universidade é um monumento ao contra-senso.
Ainda não chegamos, porém, ao pior efeito da mendicância chique. O pior, porque melancolicamente ilustrativo de uma sociedade fragmentada, é a inter-relação que se estabelece entre pedintes e doadores, esmoleiros e esmoleres. Há uma relação de cumplicidade. Com o mendigo de verdade, a reação é de medo, de asco ou, mesmo quando há simpatia, de distância e instintivo alerta. Os sentidos põem-se em guarda. Todo cuidado é pouco. Com o falso mendigo representado pelo calouro, relax, ele é um dos nossos. São os nossos meninos. As nossas meninas. Ah, essas nossas crianças e suas travessuras! Não são como aquelas outras, assustadores seres de um mundo que não conhecemos senão por raros vislumbres através da janela do automóvel. Pode-se até não dar esmola alguma, mas sai-se com a alma leve. Foi como encontrar um amigo, como rever-se na juventude. No caso do mendigo de verdade, pode-se até dar a esmola, mas a alma sai pesada de temores. O contraste entre as duas situações magnifica, nas esquinas, o sulco que, além de dividir no plano objetivo a sociedade brasileira, se prolonga insidiosamente para dentro de cada um de nós.
Roberto Pompeu de Toledo
Aquelas mãos - eram mãos de magnólia
Onde os olhos morriam silenciosamente
Detrás da vertigem passional.
Vejo-te em Vênus - a primeira,
E estando nos confins do Éden
Penso você sobre a aurora.
[...]
Cantei seu nome nas ruas que passeio
E um passarinho veio me dizer bom dia,
Doce como a flauta-doce,
Por ter saudade da voz-azul do meio-dia.
L. Valdez
Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o seu quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos, embora não falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente parco de palavras e, a bem dizer, não se digne pronunciar nenhuma. Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões, pelos quais se faz entender admiravelmente. É o seu sistema.
Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o mundo ocidental e o oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso (encantador, apesar da falta de dentes), abonam a classificação.
Objeto que visse em nossa mão, requisitava. Gosta de óculos alheios (e não os usa), relógio de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta das coisas para pegá-las, mirá-las e ( é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pô-las na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas pupilas azuis – porque me esquecia dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer suspeita apressada, sobre a razão íntima de seus atos.
Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele porque destruiu a lâmpada do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas eram indiferentes à nossa amizade – e, até, que a nossa amizade lhes conferia caráter necessário, de prova; ou gratuito, de poesia e jogo.