domingo, dezembro 18, 2011

Liberou geral




Atrasado que sou, acreditava que, se a lei proíbe o uso dessas drogas, é que elas são prejudiciais


Depois de aprovar a Marcha da Maconha, o Supremo Tribunal Federal decidiu, recentemente, liberar também manifestações públicas a favor de toda e qualquer droga, seja lícita ou ilícita.


Já disse, aqui, que sou da terra da maconha, o Maranhão, onde ela era chamada (não sei se ainda o é) de diamba e só consumida por marginais, e não por todos. O maior uso da Cannabis era feito pelo Cotonifício Cândido Mendes, que dela fazia tecidos usados em sacos para cereais. Hoje, a maconha é assunto do Supremo Tribunal Federal e também da Procuradoria Geral da República, que solicitou ao STF a liberação da marcha em favor das drogas entorpecentes.


Como se vê, o assunto é sério, de interesse da República. Não me lembro de ter a Procuradoria Geral da República interferido junto ao STF em favor, por exemplo, dos direitos de cidadãos brasileiros que não gozam de atendimento médico nos hospitais públicos, muito embora isso lhes seja garantido pela Constituição. Muitos desses hospitais -conforme se vê com frequência nos jornais e na televisão- não possuem equipamentos indispensáveis para o tratamento dos pacientes, alguns dos quais morrem em seus corredores e nas salas de espera.


E fico por aqui, pensando nessa gente de alto coturno debruçada sobre um processo de fundamental importância para nação em que se decide ser lícito ou não defender publicamente, em passeatas, o uso da maconha e da cocaína. E do crack também, não?


Pois é, graças a esses altos órgãos da República, descobri o quanto perde a cidadania em ter cerceado o consumo das drogas ilícitas. Eu aqui, atrasado que sou, acreditava que, se a lei proíbe o uso dessas drogas, é que elas são prejudiciais às pessoas e ao convívio social. E, se a lei o proíbe, sair à rua para defendê-las seria contra a lei.


Engano meu. Conforme o Supremo, contra a lei seria fazer a apologia das drogas. Mas quem sai às ruas pedindo a legalização do consumo delas não está, implicitamente, afirmando que elas são benéficas? Você, leitor, sairia às ruas para defender algo que considere maléfico? Ninguém o faria, nem mesmo -creio eu- os ministros do Supremo e o Procurador Geral da República. Logo, o argumento do STF de que permite a defesa do consumo de drogas mas não sua apologia é um sofisma.


Mas não é esse o aspecto do problema que gostaria de examinar agora, e sim o fato de que a decisão do STF, baseada em dispositivos constitucionais, parece conduzir a contradições insolúveis. Um dos ministros disse que permitir manifestações públicas pela liberação das drogas é fazer valer plenamente o direito dos cidadãos. Pode ser, mas, ao mesmo tempo, tais manifestações contrariam as leis que proíbem a venda e o consumo de drogas.


Não obstante, outro ministro chegou a afirmar que "os brasileiros não suportam mais falsos protecionismos cujo único resultado é o atraso". Se isso é verdade, por que pouco mais de 5.000 brasileiros participaram da marcha da maconha numa cidade de 5 milhões de habitantes? Atraso a meu ver é pretender anular a Lei da Ficha Limpa para manter no Congresso parlamentares comprovadamente corruptos.


Não discordo dos ministros quando defendem o amplo direito de o cidadão manifestar seu pensamento. Mas a questão é, em si mesma, complexa. Embora não seja advogado nem jurista, atrevo-me a afirmar ser pouco provável que alguma Constituição preveja todas as implicações das ações humanas.


Aprova o STF manifestações em favor da pedofilia? Certamente não. Então a liberdade de pensamento tem limites. Isso leva a crer que, a partir de determinado ponto, terão que prevalecer o bom senso, os valores e interesses que atendem às necessidades vitais da sociedade, como a segurança, o convívio fraterno, o respeito à paz e à vida humana.


É uma ilusão supor que a liberdade sem limites seja sinônimo de justiça, já que, como observou um dos ministros, é impossível manter a liberdade de pensamento quando ela resulta em legitimar atos ofensivos aos direitos fundamentais e à convivência democrática. A justiça eficaz é a justiça possível, uma vez que, como disse Rimbaud, a visão plena da justiça "é um prazer somente de Deus".


Ferreira Gullar


Folha de São Paulo - 18/12/2011

domingo, junho 05, 2011

Quando urubu está de azar


FAZ UMAS poucas semanas, ao receber do porteiro do prédio a correspondência chegada aquele dia, dei com um envelope da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e gelei. Gelei pressentindo alguma aporrinhação, porque, como se sabe, gato escaldado tem medo de água fria.

Nunca recebi qualquer correspondência vinda do governo - seja federal, estadual ou municipal - que me trouxesse uma boa notícia.

O governo, quando me envia alguma mensagem, é para me intimar a prestar esclarecimento sobre a declaração do imposto de renda e coisas semelhantes. Nunca me manda cumprimentos pelos tantos anos em que estou no batente nem agradecendo a quantidade de impostos que recolho anualmente. Para me devolver o que foi cobrado a mais, isso nunca! Pelo contrário: por mais que pague, estou sempre devendo.

O governo -que teoricamente existe para me proteger e amparar - é de fato meu inimigo público número um.

E assim foi que, grilado de antemão, abri o envelope. Não deu outra: era o Departamento de Transportes da Prefeitura do Rio de Janeiro comunicando-me que eu tinha sido multado por dirigir falando ao celular. Sucede que eu não tenho celular, nunca tive e jamais terei.

E mais: quase nunca falo ao celular e jamais o fiz dentro do carro, ainda que estacionado. Falo ao telefone o menos que posso. Donde saiu então essa imputação absurda?

Não faço a menor ideia. E ela não é absurda apenas porque não uso esse tipo de telefone: mesmo que o usasse, o guarda de trânsito não me poderia ver, porque os vidros do carro não o permitiriam, são escuros, protegidos com insufilme. Desconfio que esse guardinha amigo estava maconhado.

O certo, porém, é que, maconhado ou não, estava a serviço de uma espécie de azar que, nesse particular, me persegue. Não foi esta a primeira vez que a maconha ou o acaso me escolhem para vítima.Talvez o leitor já tenha ouvido falar que, durante a ditadura, fui para o exílio. Pois é, fui acusado de ações subversivas contra o regime militar. Pois bem, não digo que essa acusação fosse falsa, e tanto não era que decidi cair fora antes que o DOI-Codi me pegasse.

Não vou contar aqui o que passei, mudando de país conforme as circunstâncias e as ameaças. Em resumo, comi o pão que o diabo amassou, mas, um dia, consegui voltar para casa. Passei por alguns percalços ao regressar, mas pouco depois estava com minha família e, no Luna Bar, com meus amigos.

Fui então aconselhado, por um advogado amigo, a solicitar ao Superior Tribunal Militar cópia da decisão me havia absolvido e levei um susto: o cara, que os milicos procuravam e contra o qual iniciaram aquele processo por subversão, era José de Ribamar como eu, mas não era eu. Ou seja, o José de Ribamar que pagou o pato fui eu, mas o absolvido foi outro.

Por isso rezo todos os dias para que os militares não voltem ao poder, pois do contrário vou ter que me mandar de novo não sei para onde. Bem, isso é pouco provável que aconteça, mas, em compensação, sempre haverá um guarda de trânsito para me acusar do que não fiz.

Foi assim que, como disse no início da crônica, abri a carta do Departamento de Transportes da prefeitura, que me acusava de dirigir meu carro falando ao celular. Minha primeira reação foi de espanto e revolta, mas verifiquei que, junto com a acusação, havia informações do que deveria eu fazer, caso decidisse recorrer da multa que me havia sido imposta.

Aquilo me deixou mais revoltado ainda: para escapar da acusação infundada, terei eu que entrar com dois processos no tal famigerado Departamento de Transportes e tentar provar que sou inocente.

Provar inocência?! Mal consigo acreditar. Alguém precisa dizer a esse pessoal uma coisa que todo mundo sabe, isto é, que o ônus da prova cabe a quem acusa e não a quem é acusado. Não é esse o argumento que estão usando para dispensar o Palocci de explicar donde veio sua súbita fortuna? Quer dizer que o que vale para gente do governo não vale para nós?

A nossa Constituição diz que todo cidadão é inocente até que sua culpa seja comprovada. Não obstante, parece que, para o Departamento de Transporte da Prefeitura do Rio de Janeiro, a Constituição não vale: é o acusado que deve provar sua inocência.

Diante disso, o que faço? Me exilo de novo?

Ferreira Gullar

Folha de São Paulo - 05/06/11

quarta-feira, maio 04, 2011

Cola é instituição nacional


Se quiser me tachar de rabugenta, sinta-se à vontade. A verdade é que ninguém conseguirá me persuadir de que a corrupção, este câncer terminal que acomete o nosso encrencado país, não emane da primeira cola.

Como aquele primeiro sutiã, que a gente nunca esquece, a cola acaba se tornando um acessório natural para o jovem mutreteiro. "Faz parte", como diria aquele brutamontes que enganou e mentiu para vencer o show da realidade, mas todo mundo fez que não viu.

Na primeira vez que os futuros políticos, fiscais, jornalistas, juízes, empresários e comerciantes falsificam um resultado na escola, pode crer, a porteira se abre.

Quem cola passa a achar a coisa mais natural do mundo usar de truques e enganação para atingir o sucesso. A cola é tão natural, que acabou se tornando uma instituição nacional, tão enraizada em nosso dia-a-dia quanto a propina e a sonegação de impostos.

"Faz parte" chegar em casa depois de alguma prova e anunciar aos pais que só se conseguiu um bom resultado em razão de se ter colado. "É isso aí, filhão! Garoto esperto!" Também "faz parte" pais e mães aplaudirem a molecada pelo bom resultado escolar, tenha ele sido obtido na base da cola ou do suor da testa. Chegamos ao requinte de ver pais ajudando os filhos na compra de equipamentos eletrônicos, como fones de ouvido para telefone celular, que serão usados exclusivamente para perpetrar a cola.

A prática da cola é tão lícita entre nós tapuias, que um dos maiores jornais do País, O Estado de São Paulo, batizou seu caderno para jovens de "Cola". Que tipo de mensagem O Estadão está tentando dar? Que ser "ishpertinho" e manhoso merece aplauso?

Alo, Homer Simpson! Depois o pessoal ainda chia quando o Brasil é tratado como um país de trapaceiros, até pêlos autores de nosso desenho animado predileto. "Quem não cola não sai da escola". Parece brincadeira, mas estamos acostumados a conviver placidamente com o lamentável ditado, como se fosse mesmo verdade que só se dá bem na escola e na vida quem engana, mente e trapaceia. Será rabugice minha ou este tipo de fundamento escroque não causa a proliferação de tudo aquilo que se opõe à ética e ao talento?

Veja só: estudei a vida inteira na Escola Britânica de São Paulo e nunca colei ou vi alguém colar. A inglesada muito se orgulha do fairplay, o jogo limpo, que eles alegam ter inventado. A cultura deles não incentiva essa mania de vencer a qualquer custo. Nas escolas inglesas, o aluno passa de ano em função da avaliação global do trabalho realizado ao longo do ano, e não baseado na média de notas, como aqui.

Ou seja: lá, eles dispõe de tempo, dinheiro e gente treinada para dar atenção a cada aluno individualmente. Lá, você não é um número que tem a obrigação de produzir apenas boas notas. No fim das contas, é esse "pequeno" detalhe que separa o joio do trigo.

Barbara Gancia

segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Carcinoma

Sinto amargo na boca.
Gosto paraplégico da angústia
Que de épocas contempla aos cândidos
Com um belo câncer no miocárdio.

L. Valdez

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Mendicância chique

Nada mais familiar aos brasileiros do que as esquinas cheias de gente pedindo esmola. Entre os pedintes há os que se apresentam em cadeiras de rodas ou muletas. Há os velhos, os barbudos, os bêbados e as mulheres com bebês no colo. Há as crianças, sobretudo, muitas crianças. De uns tempos para cá elas se especializaram em fazer malabarismo na frente dos carros. Algumas são realmente competentes na arte de manter no ar três, quatro ou cinco bolinhas. Demonstram que tiveram sagacidade e persistência para aprender, o que pode ser sinal de talento também para outras coisas na vida. Outras vão mal, constrangedoramente mal. Fazem papel de pequenos palhaços involuntários no show das esquinas. Todos têm em comum os andrajos com que se vestem e a fuligem da pobreza que lhes cola à pele, sinais do desvio social em que estão metidos.

Todos? Não. Há uma exceção: uma tribo de mendigos chiques que sazonalmente invade as ruas. Vestem roupa de butique. Não raro, terminado o expediente nas esquinas, dirigem-se ao carro que estacionaram nos arredores – carro bom, de modelo recente. O compromisso seguinte será uma compra no shopping center ou, se estiver na época, uma sessão da Fashion Week. A noite terá o restaurante da moda e a balada. São os novos alunos das faculdades. Nesta época, de divulgação dos resultados dos vestibulares, eles se postam nos cruzamentos, monitorados pelos "veteranos", para pedir dinheiro. Não dizem que estão pedindo esmolas. Dizem que é para arrecadar fundos para a festa dos calouros, para a cervejada, algo nessa linha. O.k., assim é mais elegante para com a clientela, ainda que cruelmente deselegante com quem pede para comer mesmo.

Tanto melhor, dirão alguns, que o trote dos calouros se limite a pedir dinheiro. Há versões piores, que vão da violência física a situações de humilhação moral muito mais perversas do que esmolar. Quatro anos atrás, em São Paulo, um calouro de medicina morreu na piscina onde, sem saber nadar, fora forçado a mergulhar. Há algo de deprimente, no entanto, nessa gente bem-posta, bem-vestida e, em regra, claro, branca – a cor de pele da esmagadora maioria dos que entram nas faculdades – reunida nas esquinas para mendigar. Para começar, os calouros pecam contra os princípios da sadia concorrência. Drenam os trocados que, de outra forma, poderiam destinar-se ao andrajoso de pele escura da esquina seguinte. Mas esse é um aspecto secundário da questão. Importante é o significado que o exercício da mendicância chique assume no plano mais simbólico.

Outrora, uma das cenas favoritas, nos desenhos ou nas gravuras que exploravam a estética do grotesco, era o festim dos mendigos. Em torno de uma mesa farta, reuniam-se os maltrapilhos, os sujos, os desdentados. Considerava-se muito divertida a inversão dos papéis. Na mesa dos ricos, por vezes até provida de finas toalhas e cristais, os pobres se esbaldavam. No caso da mendicância dos calouros, observa-se a mesma inversão de papéis, mas em sentido contrário: são os ricos que imitam os pobres. É a velha história do príncipe e do mendigo, na faceta não do mendigo reinando no palácio, mas do príncipe esmolando pela rua.

Quando o pobre imita o rico, o resultado pode ser cômico ou trágico, dependendo do talento de quem imita e do espírito de quem observa. Quando o rico imita o pobre, o resultado é humor negro, o mais puro e desabrido humor negro, ainda mais no Brasil. A caricata versão do mendigo de camiseta de grife é o Brasil achincalhando a si mesmo. É a encenação, na avenida, para usar da linguagem carnavalesca, do enredo da imitação da miséria, campeão indiscutível, num país já suficientemente aquinhoado de miséria, no quesito escárnio. A figura do pedinte que acaba de ingressar no círculo do privilégio que é a universidade é um monumento ao contra-senso.

Ainda não chegamos, porém, ao pior efeito da mendicância chique. O pior, porque melancolicamente ilustrativo de uma sociedade fragmentada, é a inter-relação que se estabelece entre pedintes e doadores, esmoleiros e esmoleres. Há uma relação de cumplicidade. Com o mendigo de verdade, a reação é de medo, de asco ou, mesmo quando há simpatia, de distância e instintivo alerta. Os sentidos põem-se em guarda. Todo cuidado é pouco. Com o falso mendigo representado pelo calouro, relax, ele é um dos nossos. São os nossos meninos. As nossas meninas. Ah, essas nossas crianças e suas travessuras! Não são como aquelas outras, assustadores seres de um mundo que não conhecemos senão por raros vislumbres através da janela do automóvel. Pode-se até não dar esmola alguma, mas sai-se com a alma leve. Foi como encontrar um amigo, como rever-se na juventude. No caso do mendigo de verdade, pode-se até dar a esmola, mas a alma sai pesada de temores. O contraste entre as duas situações magnifica, nas esquinas, o sulco que, além de dividir no plano objetivo a sociedade brasileira, se prolonga insidiosamente para dentro de cada um de nós.

Roberto Pompeu de Toledo

sábado, fevereiro 19, 2011

Solstício de alma

Saudade tenho da voz-azul do meio-dia,
Riacho lento que de noite acalenta
E embala-me com uma chanson de mimo.

Aquelas mãos - eram mãos de magnólia
Onde os olhos morriam silenciosamente
Detrás da vertigem passional.

Vejo-te em Vênus - a primeira,
E estando nos confins do Éden
Penso você sobre a aurora.

[...]

Cantei seu nome nas ruas que passeio
E um passarinho veio me dizer bom dia,
Doce como a flauta-doce,
Por ter saudade da voz-azul do meio-dia.

L. Valdez

domingo, fevereiro 13, 2011

No Aeroporto

Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o seu quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos, embora não falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito assunto, e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente parco de palavras e, a bem dizer, não se digne pronunciar nenhuma. Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões, pelos quais se faz entender admiravelmente. É o seu sistema.

Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o mundo ocidental e o oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso (encantador, apesar da falta de dentes), abonam a classificação.

Objeto que visse em nossa mão, requisitava. Gosta de óculos alheios (e não os usa), relógio de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta das coisas para pegá-las, mirá-las e ( é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pô-las na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas pupilas azuis – porque me esquecia dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer suspeita apressada, sobre a razão íntima de seus atos.

Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele porque destruiu a lâmpada do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas eram indiferentes à nossa amizade – e, até, que a nossa amizade lhes conferia caráter necessário, de prova; ou gratuito, de poesia e jogo.

Viajou meu amigo Pedro. Fico refletindo na falta que faz um amigo de um ano de idade a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto ficou vazio.

C. Drummond